quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

SUAVÍSSIMA

Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente . . .


Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma . . .


Fica-se longe, quase morta, como ausente . . .
Sem ter certeza de ninguém . . . de coisa alguma . . .
Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente,


De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma . . .
E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .


Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente . . .


Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
Tão para lá! . . . No fim da tarde . . . além da bruma . . .


E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma . . .


Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma . . .
E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .

CECÍLIA MEIRELES In Poemas Completos

sábado, 5 de setembro de 2009

"Sou entre flor e nuvem,
estrela e mar.
Por que havemos de ser unicamente humanos,
limitados em chorar?"

Cecília Meireles

Não queiras ser.
Não ambiciones.
Não marques limites ao teu caminho.
A Eternidade é muito longa.
E dentro dela tu te moves, eterno.
Sê o que vem e o que vai.
Sem forma.
Sem termo.
Como uma grande luz difusa.
Filha de nenhum sol.

Cecília Meireles


domingo, 26 de julho de 2009

ATITUDE

Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.

Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.

E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.


Cecília Meireles, in 'Viagem'

sábado, 6 de junho de 2009

SOBRE O CONHECIMENTO DE SI...

Então, um homem disse-lhe:
Fala-nos do conhecimento de si. E ele respondeu:

Os vossos corações conhecem, no silêncio, os segredos dos dias e das noites. Mas os vossos ouvidos têm sede de ouvir finalmente o eco do saber dos vossos corações.
Gostaríeis de saber pelo verboo que sempre soubeste pelo pensamento.
Gostaríeis de sentir com os dedos o corpo nu dos vossos sonhos. E está certo que assim o queirais. A fonte oculta da vossa alma deve necessariamente jorrar e correr a murmurar para o mar; e o tesouro das vossas profundezas infinitas revelar-se aos vossos olhos. Mas que não haja balança que pese o vosso tesouro desconhecido; e não procureis explorar os abismos do vosso saber com a vara ou com a sonda, pois o eu é um mar sem limites e sem medida.
Não digais: "Encontrei a verdade", mas antes: "Encontrei uma verdade."Não digais: "Encontrei o caminho da alma."Mas antes: "Cruzei-me com a alma que seguia pelo meu caminho.
"Pois a alma percorre todos os caminhos.
A alma não caminha sobre uma linha nem se alonga como uma vara.
A alma abre-se a si própria como se abre um lótus de inúmeras pétalas.

KAHLIL GIBRAN

domingo, 31 de maio de 2009

DESEJO

Desejo a vocês Cor do textoCor do texto
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com os amigos Cor do texto
Viver sem inimigos
Filme na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Ouvir uma palavra amável
Ver a banda passar
Noite de lua cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir não
Nem nunca, nem jamais
Nem adeus
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de amor
Tomar banho de cachoeira
Aprender uma nova cançãoCor do texto
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada Cor do texto
Uma festa
Um violão
Uma seresta Cor do texto
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas com alegria
Uma tarde amena
Calçar um chinelo velho
Tocar violão para alguém
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu



Carlos Drummond de Andrade

AFINIDADE

A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos. E o mais independente. Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto no exato ponto em que foi interrompido.

Afinidade é não haver tempo mediando a vida. É uma vitória do adivinhado sobre o real. Do subjetivo para o objetivo. Do permanente sobre o passageiro. Do básico sobre o superficial.

Ter afinidade é muito raro. Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar. Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois que as pessoas deixaram de estar juntas. O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.

Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos fatos que impressionam comovem ou mobilizam. É ficar conversando sem trocar palavras. É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento

Afinidade é sentir com. Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo. Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado. Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.
Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo. É olhar e perceber. É mais calar do que falar, ou, quando falar, jamais explicar: apenas afirmar.

Afinidade é jamais sentir por. Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo. Mas quem sente com, avalia sem se contaminar. Compreende sem ocupar o lugar do outro. Aceita para poder questionar. Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.

Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças. É conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas, quanto das impossibilidades vividas.

Afinidade é retomar a relação no ponto em que parou sem lamentar o tempo de separação. Porque tempo e separação nunca existiram. Foram apenas oportunidades dadas (tiradas) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar. E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais a expressão do outro sob a forma ampliada do eu individual aprimorado.



ARTHUR DA TÁVOLA

SONETO DA SEPARAÇÃO

Cor do texto
Cor do textoCor do texto
De repente do riso fez-se o prantoCor do textoCor do textoCor do texto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto


De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama


De repente, não mais que de repente

Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente


Fez-se do amigo próximo o distante

Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


VINÍCIUS DE MORAES

sábado, 16 de maio de 2009

SONETO DA FIDELIDADE



De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesarCor do texto ou seu contentamento.

E assim quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão fim de quem ama .

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Morais

terça-feira, 12 de maio de 2009

FRAGILIDADE


Toda flor vive, alegre, a oferecer beleza, com sua forma, perfumada e colorida; a flor não quer mais nada que se doar; está sempre a dizer, à sua maneira, terna e delicada:— "Sei que sou frágil; tens todo poder sobre mim; que hás tu de me fazer?"Ao ver tanta meiguice, desarmada e lembro de uma flor da humanidade que soube dar a Deus o eterno sim e que foi frágil do começo ao fim; na cruz foi a total fragilidade onde aceitou por todos nós sofrer, sendo a suprema fonte do poder.


Diógenes Pereira de Araújo

segunda-feira, 11 de maio de 2009

REINVENÇÃO

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.Cor do texto
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.


CECÍLIA MEIRELES

segunda-feira, 4 de maio de 2009

SER POETA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!


É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!


É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!


E é amar-te, assim perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!


FLORBELA ESPANCA

sexta-feira, 1 de maio de 2009

TU TENS UM MEDO


Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor......
E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.


Cecília Meireles

segunda-feira, 27 de abril de 2009

AMAR!

Amar. Eu quero amar,
amar perdidamente!
Amar só por amar:
aqui... além...
Mais Este e Aquele,
o Outro e toda a gente...
Amar! Amar!
E não amar ninguém!

Recordar?
Esquecer?
Indiferente!...
Prender ou desprender?
É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira
é porque mente!

Há uma primavera
em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz,
foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó,
cinza e nada,
Que seja a minha noite
uma alvorada,
Que me saiba perder...
pra me encontrar...

FLORBELA ESPANCA

PARA SER GRANDE...

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

FERNANDO PESSOA - (RICARDO REIS)

POETAS

Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.

Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas

E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também!

FLORBELA ESPANCA

sexta-feira, 24 de abril de 2009

"Podamos a planta
do corpo,
da resistência.

Reformamos o quarto da empregada.
Em escritório, a dependência.
Em terraço, o corredor.
Em sala de estar.

Não superamos
os limites
mudamos
As fronteiras de lugar.

"Carpinejar".

quinta-feira, 16 de abril de 2009

VEM SENTAR-TE COMIGO

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.


Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro.
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois.
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

FERNANDO PESSOA.



quinta-feira, 9 de abril de 2009

BILHETE

ItálicoSe tu me amas, ama-me baixinho.
Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho... Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

Mario Quintana

domingo, 5 de abril de 2009

5° MOTIVO DA ROSA

Antes do teu olhar, não era,
nem será depois, - primavera.
Pois vivemos do que perdura,
 
não do que fomos. Desse acaso
do que foi visto e amado: - o prazo
do Criador na criatura... 

Não sou eu, mas sim o perfume
que em ti me conserva e resume
o resto, que as horas consomem. 


Mas não chores, que no meu dia,
há mais sonho e sabedoria
que nos vagos séculos do homem. 


Cecília Meireles

quarta-feira, 25 de março de 2009

ANINHA E SUAS PEDRAS

Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

CORA CORALINA

domingo, 22 de março de 2009

DISCURSO AOS INFIÉIS

Por que chorar de saudade,
se me resta o longo mar sonoro e vazio,
a flor perfeita, a estrêla certa,
e a canção que o pássaro vai borlando ao vento?



Por que chorar de saudade,
se me resta um jardim de palavras,
e os bosques do eco
e êstes caminhos da memória me pertencem?



Por que chorar pelo que me levais,
se é maior o que fica:
se a sombra em que voa recordo é mais bela que o vosso
vulto,
se não podeis ser em vós o que em mim sois,
se em vós morreis e em mim ressuscitais?



é melhor não ficar jamais com quem nos ama.
O amor é um compromisso de grandeza,
o amor é uma vigília incansável...
e aparentemente vã.



Passai, parti, deixai-me, vós que, no entanto,
parecestes um momento mais adoráveis
que o mar, que a flor, que a estrela,
que a canção que um frágil pássaro vai borlando no vento...



Éreis o vento, apenas.



CECÍLIA MEIRELES

sábado, 21 de março de 2009

COROAI-ME

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade,
De rosas —

Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!

Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

Ricardo Reis - Odes De Ricardo Reis

sexta-feira, 20 de março de 2009

Reconhecimento do Amor

Amiga, como são desnorteantesOs caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suaveOnde se reclina a inquietação do forte(Ou que forte se pensa ingenuamente).Trazias nos olhos pensativosA bruma da renúncia:Não querias a vida plena,Tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,Não pedias nada,Não reclamavas teu quinhão de luz.E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.Descansei em ti meu feixe de desencontrosE de encontros funestos.Queria talvez - sem o perceber, juro -Sadicamente massacrar-seSob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíamDesde a hora do nascimento,Senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,Ou mais longe, desde aquele momento intemporalEm que os seres são apenas hipóteses não formuladasNo caos universalComo nos enganamos fugindo ao amor!Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentarSua espada coruscante, seu formidávelPoder de penetrar o sangue e nele imprimirUma orquídea de fogo e lágrimas.Entretanto, ele chegou de manso e me envolveuEm doçura e celestes amavios.Não queimava, não siderava; sorria.Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amorQue trazias para mim e que teus dedos confirmavamAo se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,O Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,Quando - por esperteza do amor - senti que éramos um só.Amiga, amada, amada amiga, assim o amorDissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundoCom o olhar pervagante e larga ciência das coisas.Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,E a pura essência em que nos transmutamos dispensaAlegorias, circunstâncias, referências temporais,Imaginações oníricas,O vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,As chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,Todas as imposturas da razão e da experiência,Para existir em si e por si,À revelia de corpos amantes,
Pois já nem somos nós, somos o número perfeito: UM.Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasseà vacuidade de persistir, fixo e solar,E se confessasse jubilosamente vencido,Até respirar o júbilo maior da integração.Agora, amada minha para sempre,Nem olhar temos de ver nem ouvidos de captarA melodia, a paisagem, a transparência da vida,Perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE