quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Cecília Meireles.

sábado, 19 de novembro de 2011

Motivo


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.


Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

EPIGRAMA N.o 8

ENCOSTEI-ME a ti, sabendo bem que eras sòmente onda.
Sabendo bem que eras núvem, depús a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí.


Cecília Meireles. In:"Viagem".

quinta-feira, 20 de outubro de 2011


"Há pessoas que nos falam e nem as escutamos;
Há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam.
Mas há pessoas que, simplesmente, aparecem em nossa vida...
E que marcam para sempre..."

Cecília Meireles

domingo, 16 de outubro de 2011

Primavera

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.




domingo, 9 de outubro de 2011

Aprendi que não posso exigir o amor de ninguém...
Posso apenas dar boas razões para que gostem de mim...
E ter paciência para que a vida faça o resto...

William Shakespeare

Leveza

Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.
E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.
E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.
E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

Cecília Meireles

domingo, 2 de outubro de 2011

Meu Sonho (Cecília Meireles)

Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...
Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.
Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar?
Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.

sábado, 27 de agosto de 2011

FUMO

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram....
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos....

Invoco o nosso amor sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

Florbela Espanca

sábado, 30 de julho de 2011

O Teu Segredo

O Teu Segredo

O mundo diz-te alegre porque o riso
Desabrocha em tua boca, docemente
Como uma flor de luz! Meigo sorriso
Que na tua boca poisa alegremente!

Chama-te o mundo alegre. Ai, meu amor,
Só eu inda li bem nessa alegria!…
Também parece alegre a triste cor
Do sol, à tarde, ao despedir-se o dia!…

És triste; eu sei. Toda suavidade
Tão roxa, como é roxa uma saudade
É a tua alma, amor, cheia de mágoa.

Eu sei que és triste, sei. O meu olhar
Descobriu o segredo, que a cantar
Repoisa nos teus olhos rasos d’água!…

Florbela Espanca

domingo, 26 de junho de 2011

"Multipliquei- me,para me sentir.Para me sentir, precisei sentir tudo.Transbordei, não fiz senão extravasar-me."

(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
(...)"

(Fernando Pessoa)

sábado, 11 de junho de 2011

Momentos de Reflexão


São tão poucos...
Como são!...
É preciso às vezes
que algém se vá
pra longe da gente
quem sabe mais perto?

À todo momento
alguém deixa esse planeta
embarca no trem
do além, que o conduz
à eternidade!

Eterno sim...
Deixou marcado em nós
valores que podemos
traduzir em
forma de amor, carinho
sacrifício, luta, amizade.
E tantos outros...

Estamos tristes
Não vamos tê-lo
em forma de matéria
entre a gente.

Estamos alegres
Tivemos a oportunidade
de conhecê-lo.

E em forma de existência
Espiritual, ele
Nunca vai morrer!


Lurdinha Saleme.






sábado, 21 de maio de 2011

Não queiras ter pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os
horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda
parte
Te ponha em tudo,*
Como Deus.

* verso-base: Estarás em tudo,

Cecília Meireles
In:"Cânticos".

quarta-feira, 4 de maio de 2011

O Amor

E alguém disse:

Fala-nos do Amor:

- Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;

ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis.

E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;

ainda que a espada escondida na sua plumagem

vos possa ferir.

E quando vos falar, acreditai nele;

apesar de a sua voz

poder quebrar os vossos sonhos

como o vento norte ao sacudir os jardins.

Porque assim como o vosso amor

vos engrandece, também deve crucificar-vos

E assim como se eleva à vossa altura

e acaricia os ramos mais frágeis

que tremem ao sol,

também penetrará até às raízes

sacudindo o seu apego à terra.

Como braçadas de trigo vos leva.

Malha-vos até ficardes nus.

Passa-vos pelo crivo

para vos livrar do joio.

Mói-vos até à brancura.

Amassa-vos até ficardes maleáveis.

Então entrega-vos ao seu fogo,

para poderdes ser

o pão sagrado no festim de Deus.

Tudo isto vos fará o amor,

para poderdes conhecer os segredos

do vosso coração,

e por este conhecimento vos tornardes

o coração da Vida.

Mas, se no vosso medo,

buscais apenas a paz do amor,

o prazer do amor,

então mais vale cobrir a nudez

e sair do campo do amor,

a caminho do mundo sem estações,

onde podereis rir,

mas nunca todos os vossos risos,

e chorar,

mas nunca todas as vossas lágrimas.

O amor só dá de si mesmo,

e só recebe de si mesmo.

O amor não possui

nem quer ser possuído.

Porque o amor basta ao amor.

E não penseis

que podeis guiar o curso do amor;

porque o amor, se vos escolher,

marcará ele o vosso curso.

O amor não tem outro desejo

senão consumar-se.

Mas se amarem e tiverem desejos,

deverão se estes:

Fundir-se e ser um regato corrente

a cantar a sua melodia à noite.

Conhecer a dor da excessiva ternura.

Ser ferido pela própria inteligência do amor,

e sangrar de bom grado e alegremente.

Acordar de manhã com o coração cheio

e agradecer outro dia de amor.

Descansar ao meio dia

e meditar no êxtase do amor.

Voltar a casa ao crepúsculo

e adormecer tendo no coração

uma prece pelo bem amado,

e na boca, um canto de louvor.

Khalil Gibran