quarta-feira, 25 de março de 2009

ANINHA E SUAS PEDRAS

Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

CORA CORALINA

domingo, 22 de março de 2009

DISCURSO AOS INFIÉIS

Por que chorar de saudade,
se me resta o longo mar sonoro e vazio,
a flor perfeita, a estrêla certa,
e a canção que o pássaro vai borlando ao vento?



Por que chorar de saudade,
se me resta um jardim de palavras,
e os bosques do eco
e êstes caminhos da memória me pertencem?



Por que chorar pelo que me levais,
se é maior o que fica:
se a sombra em que voa recordo é mais bela que o vosso
vulto,
se não podeis ser em vós o que em mim sois,
se em vós morreis e em mim ressuscitais?



é melhor não ficar jamais com quem nos ama.
O amor é um compromisso de grandeza,
o amor é uma vigília incansável...
e aparentemente vã.



Passai, parti, deixai-me, vós que, no entanto,
parecestes um momento mais adoráveis
que o mar, que a flor, que a estrela,
que a canção que um frágil pássaro vai borlando no vento...



Éreis o vento, apenas.



CECÍLIA MEIRELES

sábado, 21 de março de 2009

COROAI-ME

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade,
De rosas —

Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!

Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

Ricardo Reis - Odes De Ricardo Reis

sexta-feira, 20 de março de 2009

Reconhecimento do Amor

Amiga, como são desnorteantesOs caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suaveOnde se reclina a inquietação do forte(Ou que forte se pensa ingenuamente).Trazias nos olhos pensativosA bruma da renúncia:Não querias a vida plena,Tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,Não pedias nada,Não reclamavas teu quinhão de luz.E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.Descansei em ti meu feixe de desencontrosE de encontros funestos.Queria talvez - sem o perceber, juro -Sadicamente massacrar-seSob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíamDesde a hora do nascimento,Senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,Ou mais longe, desde aquele momento intemporalEm que os seres são apenas hipóteses não formuladasNo caos universalComo nos enganamos fugindo ao amor!Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentarSua espada coruscante, seu formidávelPoder de penetrar o sangue e nele imprimirUma orquídea de fogo e lágrimas.Entretanto, ele chegou de manso e me envolveuEm doçura e celestes amavios.Não queimava, não siderava; sorria.Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amorQue trazias para mim e que teus dedos confirmavamAo se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,O Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,Quando - por esperteza do amor - senti que éramos um só.Amiga, amada, amada amiga, assim o amorDissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundoCom o olhar pervagante e larga ciência das coisas.Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,E a pura essência em que nos transmutamos dispensaAlegorias, circunstâncias, referências temporais,Imaginações oníricas,O vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,As chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,Todas as imposturas da razão e da experiência,Para existir em si e por si,À revelia de corpos amantes,
Pois já nem somos nós, somos o número perfeito: UM.Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasseà vacuidade de persistir, fixo e solar,E se confessasse jubilosamente vencido,Até respirar o júbilo maior da integração.Agora, amada minha para sempre,Nem olhar temos de ver nem ouvidos de captarA melodia, a paisagem, a transparência da vida,Perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE