sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O PASTOR AMOROSO

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até a beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor -
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim.
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais.
Por tu me escolheres para te ter e te amar.
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora,
Porque ainda o sou.

FERNANDO PESSOA (ALBERTO CAEIRO).

domingo, 15 de agosto de 2010

MURMÚRIO


TRAZE-ME um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no seu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
— vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saüdade da flor!
— Vê que nem te digo — esperança!
— Vê que nem siquer sonho — amor!

C.Meireles - VIAGEM.